A canção deletada e esquecida de Cinderela
75 anos depois, um disco de jazz resgatou um tesouro Disney
Uma das coisas mais legais de uma mídia perdida é quando é encontrada por acaso. Sempre é uma história legal de ouvir como Metropolis, um filme alemão foi achado praticamente completo na Argentina, ou como Mickey Mouse no Vietnam foi achado em uma lata de lixo, ou como A Paixão de Joana D’Arc estava abrigada em um hospital mental na Noruega.
Um dos que eu mais gosto é da trilha original de Marte Precisa de Mães, que é provavelmente um dos piores filmes já financiados e distribuídos pela Disney. O protagonista foi dublado e interpretado por Seth Green, mas os produtores acharam a voz dele grave demais pra uma criança e botaram um moleque pra dublar. Por anos creu-se que a trilha do Seth Green estava perdida, até que um youtuber ripou o Blu-Ray do filme e descobriu que a faixa estava no disco o tempo todo, só que como uma trilha oculta.
Eu esperava encontrar cenas perdidas de Valente no meu outro artigo, mas resultou em descobertas legais também. Infelizmente eu não tenho sorte nem recursos pra fazer uma grande busca, mas aparentemente um blogueiro chamado Cabel tem.
Mas como eu sei que a maioria de vocês não lê inglês (mas deveriam), eu vou contar a história dele aqui, porque é interessante e importante demais pra deixar passar.
Importante pra mim, isso é. Mas aqui é minha newsletter, minha opinião é mais importante que a de vocês. Fora daqui também.
Enfim, Cabel escreveu um artigo sobre como ele foi atrás de discos raríssimos de uma banda chamada Firehouse Five Plus Two. Se esse nome te soa familiar, você deve consumir tanto conteúdo antigo quanto eu. Eles apareceram em algumas programações Disney, incluindo Mickey Mouse Club e One Hour in Wonderland.
Porém, eles não eram uma banda oficial da Disney. Claro, a maioria do elenco do conjunto eram animadores da Casa do Rato, incluindo os lendários Ward Kimball, Frank Thomas e Harper Goff.
Ward animou o Grilo Falante (e era autista de trens tal qual Walt); Frank animou a cena do velório de Branca de Neve, e Goff trabalhou no aspecto técnico e artístico de 20 Mil Léguas Submarinas e A Fantástica Fábrica de Chocolate, a versão freestyle com Gene Wilder.
Eles começaram a tocar Dixieland (um estilo de jazz desenvolvido em Nova Orleans) nos horários de almoço, e fizeram sucesso a ponto de Walt não se importar que eles tocassem os gigs deles fora do estúdio, e que gravassem álbuns fora da Disney Records. Em algum momento isso chegou a ser um problema pra Walt, mas não é meu foco aqui. Vocês podem ler o artigo original caso queiram a história com mais detalhes, link no final do artigo.
Enfim, naquela época era comum gravarem demos e ensaios em discos, geralmente assinados “destruir imediatamente”, o que me faz questionar se realmente era pra ser destruído imediatamente já que teve todo o esforço de anotar, mas eu divago.
Cabel encontrou alguns desses discos em um leilão online, e após desembolsar mil dólares e mais uma pequena fortuna pra ter os discos ripados, algumas descobertas interessantes foram feitas.
Alguns desses discos foram gravados usando o outro lado de material em desenvolvimento dos estúdios Disney, o que deve ser o equivalente a gravar o nascimento de um filho na mesma fita com o Gilberto Barros mostrando Yu-Gi-Oh, o baralho do diabo.
A diferença é que com disco de vinil não tem perigo de gravar outra coisa por cima, mas não vem ao caso.
De um lado, ensaios de músicas onde o nome do grupo ainda não estava bem definido, então eram variações de nomes idiotas até uma F-bomb na mesma label com a marca Walt Disney Productions, que é surreal em vários níveis.
Do outro, temos outtakes de filmes e curtas animados. Um deles é uma marcação de dois personagens em Nifty Nineties, outro é uma versão alternativa de Blame it on Samba de Make Mine Music, além de alguém cantarolando A Dream is a Wish Your Heart Makes, e uma moça chamando galinhas, que soava muito como Ilene Woods, a voz de Cinderella.
Todos eles projetos em que Ward Kimball participou de um jeito ou de outro. Não sei exatamente como Ward entrou em contato com esses discos relacionados a Cinderela, já que ele não foi responsável por animar a protagonista. Os outros ele teve uma participação maior (animando ou até dublando) e faz sentido que ele tivesse os discos à mão pra usar de referência.
Até que chegamos no ponto principal dessa história: a canção deletada de Cinderella.
Agora, essa é uma sequência que teve algumas alterações, e a Disney já lançou uma versão dessa canção (que, ao me parece, foi gravada recentemente) que tá à disposição de quem quiser ver.
Essa versão é bem fraquinha em termos de letra, aliás. A idéia dela se multiplicar pra fazer todo o serviço e ainda assim não dar conta é legal e pode gerar visuais engajantes e criativos, mas a letra é bem repetitiva.
Porém, essa versão não é igual à que foi encontrada com Cabel. A essa altura, a música era completamente diferente, mas com uma melodia familiar:
Pois é, a música dos ratinhos originalmente iria ser cantada pela própria Cinderella! É legal que, sendo um dos primeiros filmes a fazer overdubbing, Ilene canta uma melodia consigo mesma, mas tem outro momento do filme que isso acontece (a cena das bolhas de sabão).
Also, como disse Cabel: é surreal que sejamos as primeiras pessoas em mais de 70 anos a ouvir essa música.
Agora, existia uma versão dessa música cantada pela própria Ilene Woods, mais apressada, como material promocional para Cinderella. Não é a versão mais apropriada pra um filme, como vemos no áudio anterior, mas ainda é bastante interessante e divertida:
“I go around in circles
And I don’t know what my aim is
All I know is that my name is Cinderella”
Eu não sei vocês, mas eu gosto particularmente desse trecho. Me soa tão musicalmente anos 40, e também foca muito mais na Cinderella trabalhadora, que era o que mais ressoava pessoalmente com Walt. Sei lá, é interessante pegar essa perspectiva da época em contraste com a nossa, que parece só lembrar do final feliz.
Mas divago.
Mas, não só a descoberta em si é impressionante, há também outros pontos a mencionar. O artigo faz uma linha do tempo mostrando que, num espaço de 10 dias, essa versão foi descartada em prol de ter os ratinhos cantantes, mas já haviam gravado cenas live action pra servir de referência aos animadores. Infelizmente, nenhuma das filmagens sobreviveu, deixando apenas fotos estáticas, e eu não consegui encontrar nenhuma referente à famigerada Work Song onde ela deseja se multiplicar, ou mesmo fazendo os serviços de casa. Ou talvez essas imagens existam, mas foram reaproveitadas em outras cenas, vai saber.
E eu só fico imaginando se existem outras pérolas assim perdidas por aí, em discos com etiquetas diferentes de seu conteúdo por qualquer motivo que seja.
Aqui o link do artigo original com toda a história em detalhes e todas as descobertas que ele fez.
Enfim, fiquem com a bailarina e atriz Helene Stanley, que serviu de modelo pra Cinderela e Aurora (mas também foi Polly Crockett em Davy Crockett) no Mickey Mouse Club: