Aladdin: Um Detalhe Curioso em Twisted
Composição musical de primeira linha, talvez sem nem notar
Um dos motivos de eu mais gostar de musicais é que, ao de fato prestar atenção nas letras (e talvez ler as anotações do Genius), cê descobre nuances e detalhes que enriquecem a história e talvez tenha passado batido da primeira, segunda, ou vigésima vez que você veja ou ouça as músicas.
Embora seja feito por um bando de theater kids amadores, o StarKid tem umas produções bem interessantes, mas provavelmente a melhor coisa que já saiu do grupo tenha sido Twisted, que eu resenhei no longínquo ano de 2019.
É um musical-paródia ao estilo de Wicked, só que melhor. Tudo que Wicked se propõe a fazer, Twisted o faz com um resultado melhor, porque ele de fato se atenta ao que acontece na história original e tenta o máximo possível não soar destoante, fazendo que as duas histórias possam coexistir.
Eu ainda não superei a transformação do Homem de Lata em Wicked, que coisa tenebrosa é aquela?
É uma comédia pesada ao nível South Park, então não é pra todo mundo e eu entendo perfeitamente se não for tua praia. Mas é interessante, ao mesmo tempo que eles conseguem bolar músicas que abusam da F-word como parte da piada principal, também há músicas extremamente bem escritas, que mostram um talento real pra composição e narrativa.
Aí eu lembro que a mesma equipe que compôs as músicas de Frozen também compôs Avenida Q E Book of Mormon.
Mas em Twisted, por exemplo, temos a música “Follow the Golden Rule”, que é cantada por Jafar quando jovem, mostrando seu ideal romântico de como seria sua vida ao se tornar vizir real. E então temos “Follow the Gold and Rule”, que é cantada pelos atual vizir ao mesmo jovem Jafar, mostrando como o mundo real opera na corrupção. Uma simples e sutil troca de pronúncia, com um grande peso pra história.
Mas provavelmente a melhor canção da peça é A Thousand and One Nights, onde Sherazade (ou Sheherazade ou Sharezade ou Shareaza ou seja lá como cê queira chamar) e Jafar tem um dueto romântico. É provavelmente uma das coisas mais adoráveis que eu já vi na vida, que consegue desenvolver os personagens e ainda tirar sarro de clichês Disney.
Aqui, assiste, garanto que vale uns minutos do teu tempo.
Enfim, tem umas anotações do Genius sobre essa música que são notáveis, por exemplo, todos na vila vêem Jafar como feio, mas Sherazade o vê bonito (algo que também é um clichê em longas animados do Rato); ou como ela pede que Jafar lhe conte a história dele, do ponto de vista dele, um tema recorrente e central do musical.
Mas o que me chama atenção nessa música na real são esses trechos:
I know a thousand tales to fill a thousand nights
But now another story comes to mind
A noble, young vizier ascends to wondrous heights
He's brilliant as he's handsome, and handsome as he's kind
For when it comes to stories
I thought I knew them all
Now I'm face to face with one
I can't seem to recall
Eu poderia traduzir esses versos, mas eu prefiro que você aprenda um idioma. Mas, parafraseando, Sherazade é uma contadora de histórias (ou estórias, num português superior), que, como você sabe, todas as noites contava uma parte de uma história sem fim pro sultão pra postergar sua própria execução.
Porém, ao ver Jafar, ela fica curiosa, porque não conhece a história dele, e durante a música pede que ele conte a própria história a ela. Além de ser parte da tragédia que só duas pessoas conheçam totalmente a história de Jafar e que todos só conheçam a versão falsificada contada por Aladdin, é… curioso.
Porque Aladdin não fazia parte das Mil e Uma Noites.
Esse cara de peruca engraçada é Antoine Galland, um tradutor, arqueólogo e orientalista francês, e foi o primeiro europeu a traduzir As Mil e Uma Noites. Acontece que, como qualquer tradução (e especialmente naquela época onde as nações eram mais isoladas umas das outras), é necessário uma adaptação, cortar elementos ou até adicionar outros que traduzam o sentimento do original.
O negócio é que as mais famosas histórias que associamos com a enrolação de Sherazade não existem no original árabe. Galland traduziu a história de Sinbad, que o incentivou a procurar por mais histórias semelhantes, e foi traduzir As Mil e uma Noites. Porém, em uma de suas viagens, encontrou com um monge em Alepo, na Síria, que lhe contou catorze histórias que lembrava de memória, e o francês usou metade delas nas Mil e Uma Noites. Essas histórias incluíam Aladdin e Ali Babá e os 40 Ladrões.
Tem muito mais detalhes relacionados à tradução de 1001 Noites/Arabian Nights, vale a pena ir atrás se tiver curiosidade. Separei uns links pra cê olhar depois: [1] [2] [3]
Então, quando Sherazade olha pra Jafar e diz “eu não conheço a sua história”, é porque a jornada de Jafar/Aladdin literalmente não está presente na coletânea original. Agora, se isso foi algo proposital de Kaley McMahon e AJ Holmes, eu não sei dizer. Até porque a inspiração principal do musical inteiro foi Aladdin da Disney, bem como o estado do estúdio nos anos 90, com a Renascença e o surgimento da Pixar.
Eu tou mais impressionado como eu não fiz nenhuma piada com wrestling no último parágrafo.
Intencional ou não, eu acho fantástico pequenos detalhes como esse, prova de que a arte imita a vida, mesmo que por acidente.