Ninguém o notava ali escondido. Detrás dos barris, o goblin planejava seu próximo roubo: um espelho encrustado de jóias. O pequeno intruso se esgueirava pelos cantos do navio, abrindo caixotes em busca do tal espelho.
Até que ele abriu uma caixa que se fechou sozinha. “Estranho” ele pensou. Abriu de novo, e novamente a tampa novamente se fechou sozinha, dessa vez com um som: “Shh!” Uma 3ª vez ele abriu e dessa vez, uma mão o puxou pra dentro.
“Quer que nos encontrem?”, disse uma voz meiga, mas bruta. O goblin puxa uma pedrinha luminosa, e vê que a voz pertence a uma garotinha de capuz. "Não faça barulho, colega.”, ela disse, “Dizem que os mercadores do Mar de Sal têm ótimos ouvidos.”
O goblin parece confuso.
“Não é muito de falar, né?” disse a menina. “Meu nome é Samantha, mas pode me chamar de Sam. Procuro um artefato valioso vindo das Minas Tétricas. É um… espera, eu tenho um desenho.”
O goblin tira um papel de sua bolsa e mostra seu desenho do espelho, e Samantha pega o papel com animação: “Isso! O Espelho das Visões! Também procura por ele?”
O goblin acena a cabeça positivamente.
“Ei! Poderíamos procurar juntos! Eu não quero ele pra sempre, só quero usar uma vez, procuro algo específico. Depois disso, pode ficar contigo, que tal?”
O goblin acenou a cabeça novamente.
“Ótimo!”, disse a menina. “Mas se procura o espelho neste navio, tá perdendo o seu tempo. Eu sei onde ele está. Este navio ruma em direção ao reino de Aquaplácida, eu tenho um contato lá que disse ter visto o espelho na sala de tesouros. Chegando lá, vamos direto pra casa dele.”
O goblin assentiu, e bocejando, começou a cochilar, já que ainda teria um bom tempo de viagem. A menina logo o acompanhou, roubando sua pedrinha luminosa e se ajeitando no feno no fundo da caixa.
Algumas horas depois, o navio aportou, acordando Sam com um baque. Ela balança o goblin o mais silenciosamente que pode, e quando ele acorda, ela faz um sinal de silêncio com os dedos.
Eles sentiram a caixa ser levada por marujos até as docas, e só quando sentiram cair no chão, saíram de fininho, se escondendo no meio das caixas e da multidão. O goblin observava tudo com muita curiosidade e atenção, já que nunca esteve em uma cidade humana tão grande assim.
Samantha o notou ficando pra trás, e puxou a mão dele, para o guiar. Corria apressada no meio da multidão, para o espanto de quem passava, que via apenas uma garotinha de capuz puxando o ar atrás dela. A menina e o goblin então pulam na parte de trás de uma carroça que carregava feno e se escondem no meio da mercadoria.
“Meu contato mora numa casinha um pouco longe das docas”, ela disse. “Mas de carona devemos chegar lá num instante…. se ele for pra estrada certa.”
Em boa sorte, era a estrada certa. Até porque o contato de Sam morava numa casinha próxima à estrada principal que ligava ao palácio do rei de Aquaplácida, então não tinha como se perder. Sam e o goblin pularam da carroça bem a tempo, e começavam a subir uma pequena colina com uma casinha no topo.
Após algum esforço, eles finalmente chegam na casinha. Sam bate na porta, que se abre, revelando um homem extremamente magro.
“Você deve ser a Samantha.”, ele disse. “E quem é esse aí?”
“Esse é o… Ele não fala muito, mas tá me ajudando a procurar o Espelho das Visões.”
“Eu vi o Espelho das Visões, assim como eu consigo ver esse goblin. Não é todo mundo que consegue vê-los, mas é uma bênção que nós dois consigamos. Entre, vou já sair pro meu trabalho, vocês podem ir de lá.”
Sam e o goblin entram na casa do homem, e aproveitam pra comer alguma coisa enquanto Samantha afia suas facas, que só agora o goblin notou, ficavam escondidas na capa.
“Oh? Gostou das minhas facas?”, perguntou Sam.
“Ele é um goblin.”, disse o anfitrião, em um tom monótono. “Eles gostam de coisas brilhantes.”
“Ah, é…”, disse Sam, como se tivesse uma epifania. Ela então começa a apontar pra cada faca, empolgada: “Ei! Olha! Essa aqui eu roubei de um nobre que usava a faca pra treinar tiro ao alvo. Essa outra eu roubei de um artesão que fazia esculturas de madeira. E essa aqui…”, ela diz, tirando uma espada da capa, “…eu tomei emprestado de um feiticeiro. Supostamente é feita de escama de dragão, mas eu acho que só ficou tempo demais no fogo.”
Os olhos do pequeno goblin brilhavam a cada faca que Sam lhe mostrava, mas ele se controlava pra não tocar na coleção.
Finalmente, o homem sairia para o trabalho. Pegou sua trouxa com o uniforme e começou a caminhada até o castelo, acompanhado da ladra e do goblin. Era um homem de poucas palavras e rosto áspero, então Sam não lhe fez perguntas durante o trajeto. O goblin pensou em perguntas, mas não podia falar. Só após passarem pelos guardas do castelo, Sam lhe perguntou: “Qual seu trabalho mesmo, mal lhe pergunte?”
O homem a olhou com um olhar cansado, e puxou um chapéu com guizos nas pontas dos apêndices. “Sou o bobo da corte.”, ele respondeu, num tom de suspiro. “Vão para as masmorras, lá haverá um velho presioneiro, ele lhes dirá onde encontrar o tesouro que procuram. Se eu não for jogado lá hoje, lembre-se de me mandar uma parte do tesouro.”
“Fechado!”, disse Sam, num tom animado. O homem emitiu algum grunhido e pôs o chapéu, direcionando-se à sala do trono.
Sutis como sombras, a ladra e o goblin se esgueiravam pelos corredores do castelo, em busca da masmorra. Viram o decapitador real trancando uma sala e indo embora assoviando. Usando uma faca torta, Sam abriu a porta e os dois passaram por ela.
As escadarias que eles tiveram que descer eram bastante íngremes, mas segurando um na mão no outro, encontravam o equilíbrio necessário. Chegando ao fundo, viram diversas correntes presas nas paredes, e em uma delas, um velho prisioneiro.
“Oi! Vocês! VOCÊS!”, berrou o cativo. “‘Tão procurando o tesouro?”
“Sim, você sabe onde encontrar?”, perguntou Sam.
“Sei, mas não vou dizer.”, ele respondeu. “Não há ninguém que seja capaz o suficiente pra responder minha charada. CHARADA!”
“Pois diga-nos, e tentaremos.”
“Muito bem. ATENÇÃO!! Aí vai: O que é tão frágil que se você olhar para ele, ele quebra?”, disse o homem, com um sorriso no canto da boca.
Sam e o goblin começaram a pensar. Coçaram a cabeça, botaram a mão no queixo, se entreolharam, mas nenhuma resposta saía. Até que o goblin olhou fixamente para o homem por alguns segundos.
“Certa resposta!”, disse o prisioneiro. “O tesouro que procuram está atrás de mim. TESOURO! ”, ele disse, puxando uma das algemas, que era mais solta para o lado de dentro da parede e ativava um mecanismo para abrir uma passagem secreta atrás dele.
Sam e o goblin entraram alegremente para a passagem secreta, e a ladra puxou a pedrinha brilhante que ela roubara do goblin, para iluminar o caminho.
“Como você resolveu a charada?”, ela perguntou. O goblin só deu de ombros.
Eles desceram uma longa escadaria em espiral, que chegava a ser tão longa e tão profunda que a luz da pedrinha já quase não era mais suficiente. Em meio à espessa escuridão, seguravam fortemente a mão um do outro para não perderem o caminho ou o equilíbrio.
Por fim, chegaram ao fundo da escadaria. Não enxergavam um palmo à frente, mas tateando pela parede, encontraram um buraco, onde Sam encaixou a pedrinha.
Imediatamente, o tesouro na sala começou a reluzir, a ponto de que não era necessário tochas ou luz natural.
“Ok, goblin.”, disse a ladra, “Vamos procurar o Espelho.”
A dupla começou a remexer os tesouros, abrir baús, praticamente nadar através de montes de moedas, taças douradas, jóias, colares e outras parafernálias que pareciam muito valiosas, mas não tinham um propósito muito claro.
Sam ia remexendo uma coisa e outra, roubando uma moeda aqui, uma jóia acolá. Até que, após tomar uma taça de prata, viu seu próprio rosto no meio do monte.
“Goblin! Achei!”, disse ela, puxando o espelho de dentro de dentro do monte.
O espelho em si parecia ser feito de titânio, mas seu revestimento era de ouro, com suas bordas incrustadas de pedras roxas, laranjas e verdes. Ao se aproximar, os olhos do pequeno goblin brilhavam, absorvendo todo o brilho do ilustre objeto.
Sam deu um forte suspiro. Recitando algumas palavras indecifráveis rapidamente, encostou a testa no espelho. Como se fosse água, o vidro começou a se mexer, e seu reflexo foi gradualmente se transformando em uma visão aérea de uma floresta. Sam tentou reconhecer o lugar, mas nada parecia familiar. Uma montanha no formato de um escudo chamou a atenção do goblin, que apontava freneticamente.
“Ah, você sabe onde é?”, perguntou Sam ao bichinho que balançava a cabeça positivamente. Ele apontou algumas direções no ar, até parar repentinamente e fitar Sam. “Passa a cachoeira, vira à direita no bosque, rola colina abaixo, sobe a colina de novo, e passa pela ponte que não estava lá antes. Entendi.”
O goblin tentou sorrir, ou algo parecido com isso.
“Muito obrigada, pequetito!”, disse Sam, abraçando o goblin. “Preciso voltar pra minha família, eu me perdi deles há alguns anos… Acho que agora já posso mostrar pra você.”, continuou a ladra, se levantando e removendo o capuz que escondia seus cabelos prateados e orelhas pontudas. Naquela sala, reluzindo todo aquele ouro, era como se a aurora boreal estivesse inteiramente dentro da sala, vindo dos cabelos de Samantha.
“Pode ficar com o espelho, eu não vou precisar mais dele.”, disse ela, entregando o artefato para o goblin, com uma certa reverência. “Talvez um dia eu precise de novo, então que tal guardar ele pra mim até lá?” O goblin consentiu com a cabeça.
Enquanto faziam o percurso de retorno para fora do castelo, ouviram gritos dos servos do rei. Aparentemente, o bobo da corte havia colocado fogo no castelo num surto que teve após o rei dormir durante seu monólogo cômico. A dupla seguiu o caminho sem muita pressa, já que o castelo não parecia estar pegando fogo por onde passavam.
“Até mais, goblin!”, disse Sam, ao chegarem próximo da estrada. “Espero te ver de novo um dia!”, e saiu correndo, praticamente voando como o vento na direção da cachoeira. O goblin acenou e colocou o espelho na bolsinha que levava consigo, onde também guardava moedas que tomara do tesouro, e seguiu seu caminho, comendo as moedas enquanto caminhava.