Donald's Dilemma (Memórias de Pato - 1947, Walt Disney)
Precisamos conversar (um pouco) sobre a Margarida.
Nos anos dourados da animação, era comum ter um casalzinho em certos personagens cuja parceira usava o mesmo modelo do homem, só que com cílios, batom, saia e etc. Era uma maneira de economizar em model sheets e marketear pra um público mais amplo, e qu virou um trope por si só. Mickey e Minnie, Foxy e Roxy, Pateta e Clarabela, Donald e Margarida.
Existem exceções, como Popeye e Olivia, Betty Boop e Bimbo, e… eu tou há literalmente uma semana tentando pensar em mais algum exemplo e falhando miseravelmente. Oh, bem, melhor desistir e continuar o artigo, senão eu nunca vou passar dos dois parágrafos.
A Margarida na real surgiu como outra personagem Donna Duck, no curta Don Donald, onde ela era ainda mais broaca e exibicionista. Digo, a Minnie conseguiu entrar nos anos 2000 de topless, mas Donna mal cobria o busto e não usava saia.
Os anos 30 eram diferentes.
Só depois, no curta Mr. Duck Steps Out, a Margarida teve um nome (embora em algum card ela tenha sido chamada de Donna), e pra primeira aparição, era bem ok. Ela era divertida, animada, e embora a atenção dela estivesse sendo disputada por Donald e seus sobrinhos, ela era alguém que só queria se divertir com o namorado e a família dele, sem ligar muito pro que acontecia.
O que é algo que seria extrapolado depois, já que nos quadrinhos ela é retratada como uma fútil cabeça-de-vento que ora sai com Donald ora sai com Gastão ou quem tiver com mais grana por perto. Claro, há histórias onde ela é repórter ou usa alguma sabedoria própria, sendo uma personagem mais completa do que vemos constantemente. Tem uma história que ela especificamente usa seu conhecimento de secretária pra capturar os Irmãos Metralha, por exemplo.
Mas quase sempre ela é representada como alguém que só liga pra moda, compras, e quem possa lhe proporcionar uma melhor conveniência. De um jeito ou de outro, é o que mais aparece nos quadrinhos, e é traduzido de forma similar pras animações. Na Era Mickey Mouse Works/House of Mouse, ela era exatamente assim, mesmo sem Gastão. Dividiram a fluidez dela com a Minnie que vez ou outra preferia o Mortimer, mas isso é história pra outro dia.
Enfim, a paixão da Margarida por compras nos levou a essa referência que com certeza vários boomers que assistiam o desenho com seus filhos tiveram um choque elétrico direto no cérebro:
To be fair, essa é uma das melhores piadas desse desenho, junto com os mamacos censores que insistiam em mudar quase todos os aspectos do programa pra ser mais family friendly.
House of Mouse é um tesouro.
Enfim, o motivo de eu trazer esse curta hoje é bem simples: não só eu quero começar a pesquisar a Margarida mais a fundo pra uma essay mais detalhada, mas também porcausa dessa cena:
Aposto que vocês devem ter visto isso antes em algum lugar da internet. É bizarro porque esse é o único momento memorável do curta, e muita gente pode ter a idéia de que o curta inteiro é um estudo psicológico denso com um teor cômico sombrio e como o senso de humor nos anos 30-50 era edgy mesmo sendo um desenho pra crianças.
E pelo menos 90% dessas presunções estão erradas.
A cena em si dura não mais que 5 segundos; os curtas animados nessa época eram feitos tanto pra crianças como pra adultos, mas ainda tinham adultos como público forte; e sim o senso de humor de animação nessa época era surreal e por diversas vezes, extremamente sombrio.
Mas sobre o que é de fato o curta?
Ok, Margarida começa chorando as pitangas pro seu psiquiatra, que curiosamente não se chama Wolmir. Ela conta todo seu drama, de como estava andando tranquilamente com Donald, até que um vaso de planta caiu na cabeça dele e ele achou ser um cantor de ópera. Imediatamente ele virou uma sensação, lotando teatros, fazendo propagandas, e esses eram os únicos meios de Margarida ver Donald, porque ele a esnobava fortemente.
O psiquiatra pergunta à Margarida se ela realmente quer que Donald volte a ser o que era antes e ter Donald só pra ela, ou deixar que ele divida o seu dom com o mundo.
Acho que já sabem a resposta.
É.
Margarida, seguindo as orientações do médico humano, arquiteta todo um plano específico pra fazer com que Donald perca sua habilidade vocal e volte a ser só dela. Por um lado, é adorável que ela queira Donald só pra ela, mas quando se lembra que ela constantemente largava ele pra fazer literalmente qualquer coisa (pelo menos nos quadrinhos), é meio trágico.
É um dos motivos que gostamos tanto do Donald, certo? Ele é “real”, ao contrário do Mickey. Mas quem diz que o Mickey não pode ser o everyman é porque só leu as histórias de detetive do camundongo, e nunca viu Mickey Mouse Works nem lembra de histórias do Mickey comum, onde ele esquecia aniversário de namoro ou tinha que aguentar um jantar chato da alta sociedade e ficava fugindo pra jogar videogame no sótão da mansão.
Mas eu divago.
Donald é irritadiço, tem que criar os filhos dos outros, é explorado pelo tio pão-duro, tá sempre sem grana, é mais burro que os sobrinhos, vive sendo maltratado e esnobado e trocado pela namorada, o carro vive enguiçando, Gastão constantemente esfrega em sua cara a vida fácil que leva, e às vezes tudo isso acontece e ele aguenta tudo mesmo que atribuam a culpa à preguiça dele.
Mas ao mesmo tempo, Donald nunca deixa de ajudar o tio ou os sobrinhos em alguma jornada de arriscar a vida; sempre foi fiel à Margaria mesmo quando aparece uma alienígena do espaço interessada nele (algo que aconteceu duas vezes, insira a piada do Doofenshmirtz ganhando duas moedas aqui); e sempre tenta ver o lado positivo das coisas. Tem umas histórias do Don Rosa fascinantes onde ele reencontra Panchito e Zé Carioca, e o pato comenta sobre como ele tá sempre na pior, mas é grato por aprender algo novo com as aventuras com o tio Patinhas e os sobrinhos. Aliás, os próprios trigêmeos arranjaram o reencontro, porque viram que Donald tava numa maré de azar desgraçada e merecia um descanso.
Isso tudo só pra poder ilustrar nesse curta específico, como Donald é um personagem franzino, pobre, burro, azarado, lazarento, sem talento, cuja única alegria na vida é dormir e contar piadas às custas do Tio Patinhas, provavelmente porque trabalha demais e precisa de uma válvula de escape. Nesse curta, Donald finalmente tem uma grande chance de ser alguém, de ser útil, trazer alegria ao povo com um dom único, e Margaria não hesita em tirar isso dele por algo que soa como egoísmo.
Claro, há dois problemas com meu raciocínio:
1) quando esse curta foi feito, a sinergia com os quadrinhos ainda não era 100% (raio, até hoje não é e jamais poderia ser) e muito do que eu mencionei aqui é construção feita no que foi semeado pelos curtas. É uma percepção mais completa que na época do curta não poderia ter sido feita de jeito nenhum, então não era intenção dos produtores passar essa idéia que eu tou pegando aqui do futuro.
2) é um curta de comédia com um final em loop. Precisamos voltar ao status quo do Donald loser que tanto amamos com a Margarida abusiva pra manter tudo em ordem. O exagero da Margarida em não hesitar de destruir os sonhos de Donald poderia levar a um drama desnecessário e que não caberia aqui de jeito maneira, porque é um negócio de 8 minutos pra te fazer rir antes do main event começar.
Ainda assim, é interessante pensar em como a lógica de mundo funciona aqui. Muito da personalidade dos dois personagem já estava sendo estabelecida nesses curtas, e era deliberado de tornar Margarida uma namorada abusiva e egocêntrica que o Donald jamais poderia se livrar porque ele tem azar crônico, e o fato da Margaria ser uma constante pé no saco faz parte desse azar.
Eu penso nisso toda vez que vejo um merch da Margarida pra vender. É engraçado como essas pequenas coisas acabam sendo esquecidas quando se precisa vender camisas, bolsas e chinelas pra crianças, elas estão usando a imagem de uma personagem que é constantemente retratada como um péssimo exemplo em todas as esferas, mas que não é retratada como vilã.
Algo parecido acontece com o merch de Peanuts, exceto que nenhum dos personagens é necessariamente um mau exemplo de pessoa, mas a gente esquece tudo que o Charlie Brown representa originalmente.
Talvez a idéia por trás seja, ao final do dia, mostrar a Margaria como alguém tão humana quanto Pato Donald, que também não é lá um exemplo de domínio próprio. Ambos tem suas falhas, mas é engraçado como debativelmente a Margarida tem um comportamento muito mais destrutivo e malicioso que o Donald, mas ninguém bate o olho nisso.
Sim, eu tou lendo demais, mas é pra isso que eu tou aqui.