The Saga of Windwagon Smith (Disney, 1961)
Uma recontagem de uma lenda americana
Uma das coisas mais sensacionais da Disney e que era sua marca até um tempo atrás, era a de adaptar histórias já conhecidas com seu toque particular. O estúdio inteiro foi fundado baseado em Branca de Neve, Pinóquio, Bambi e até quando o velho Walt se viu obrigado a fazer live actions, como A Canção do Sul, Ilha do Tesouro e Robin Hood, e se for buscar ainda mais atrás, tem os Laugh-O-Grams que parodiavam contos de fada como Cinzerela e Chapeuzinho Vermelho.
Sim, eu defendo que nós como nação chamemos o conto de Cinzerela, não me encha o saco.
Diga-se de passagem, os primeiros live-actions da Disney são de fato um gosto adquirido. Revi The Story of Robin Hood and His Merrie Men dia desses, e gostei bem mais do que da primeira vez que vi, escrevendo a retrospectiva Tio Walt.
Até mesmo filmes que hoje são icônicos e fazem parte do panteão de filmes consagrados da companhia, como os filmes de Herbie, Flubber, Dama e o Vagabundo e até Felpudo, o Cão Feiticeiro (com suas sequels e o remake com Tim Alen e Robert Downey Jr., que não tem no Disney+) são baseados em contos ou livros.
A história do cara que é amaldiçoado a virar cachorro é do mesmo autor que escreveu Bambi, aliás.
E o legal é que Walt era um cara que tinha um olho bom pra contos de fora, mas também era muito patriota, e adaptou lendas e contos americanos também, embora eles aparecessem mais nos curtas do que nos longas, que ainda é algo daora, tho. Sleepy Hollow e Johnny Appleseed me vem à mente, mas Walt queria adaptar O Mágico de Oz, e só não o fez porque a MGM chegou antes dele.
E só agora, escrevendo e pesquisando sobre esse curta, eu descubro que também é baseado em uma lenda americana, e que eu não sei como raios não virou um longa metragem. Não digo nem pela Disney, mas por qualquer um.
O curta em questão é quase uma anomalia, se me perguntar. Produzido nos anos 60, apenas a 5 anos do falecimento do velho Walt, numa época que a Disney como estúdio/empresa tava tentando economizar o máximo possível, abandonando um pouco as filosofias atemporais de seus filmes e tentando agradar ao público da época.
Faça o teste você mesmo: assista, um atrás do outro, Alice no País das Maravilhas (ou Peter Pan), A Dama e o Vagabundo, A Bela Adormecida e 101 Dálmatas. Sim, é claro que as versões animadas, seu zoomer repugnante e desprovido de cultura. Você vai notar claramente que em termos estilísticos, narrativos, e artísticos, 101 Dálmatas é uma bola fora da curva, enquanto todos os outros poderiam muito bem ser as versões quintessenciais dos contos originais. Até mesmo o filme da pior Princesa Disney, que tem influências visuais claras de sua época, consegue ter um senso de estética clássico. Jungle Book é outro filme que tenta apelar pra gostos e estéticas mais populares da época.
The Saga of Windwagon Smith segue o mesmo padrão, só que com um orçamento ainda menor, o que o torna mais parecido com um curta da Hanna-Barbera se eles tivessem alto orçamento. Digo, é claro que houve um notável esforço de design, direção de arte e animação, mas ainda assim o curta toma vários atalhos visuais pra economizar tempo e dinheiro, como o de manter vários personagens de fundo estáticos e animar só as bocas, olhos e talvez os braços.
O bom é que o próprio curta sabe que isso seria notável, e o design de personagem joga a favor disso, com personagens extremamente angulares e estilizados, como se fosse um desenho da UPA. E mesmo assim, há momentos que a animação se esforça um pouco mais pra trazer movimentos extras, em especial quando sente que essa movimentação a mais reforçaria a emoção da cena, como os cabelos da filha do prefeito ao vento.
Ok, eu sinto que me adiantei demais e não descrevi o plot do curta. A história se baseia na lenda de um capitão que chegou numa cidade do velho oeste com um vagão movido a vento, customizado pelo próprio capitão, que montara a parte de cima de um navio em cima do vagão. O pessoal da cidade fica maravilhado com a geringonça e convence o capitão a ajudá-los a produzir um vagão ainda maior, que poderia ser usado em rotas comerciais de uma maneira mais eficaz.
Eles se esquecem que estão no Kansas, lugar que sim, venta muito, mas também tem a fama de Mágico de Oz.
Eu gosto muito desse curta, é uma história absurdamente simples, sucinta, mas que tem todos os elementos que poderiam ser necessários pra uma história ser grandiosa. Eu diria mais, seria ideal como um filme de aventura daqueles bem pipocão, bem Sessão da Tarde, algo que cê começa a ver despretensiosamente, por puro tédio. Aquele tédio que só a força calorenta de uma tarde consegue magicamente proporcionar. E uma única coisa te chama a atenção, te marca e te faz relembrar do filme: o raio do navio-vagão. E o resto do filme é permeado de personagens maiores que a vida, de heróis, mocinhas, dilemas e bandidos. Nada absurdamente complexo, mas divertido o suficiente pra que você continue a acompanhar.
Se fosse um filme escrito por William Goldman seria daora. Eu sei que ele tem pelo menos algum apreço por rimas.
Ah é, o curta é todo rimado, tal qual uma verdadeira balada histórica.
O mais curioso desse curta, talvez, é a forma que ele foi lançado. Veja bem, ele tem alguns retratos considerados racistas de índios e um chinês. Por algum motivo tiraram a cena do batismo do índio de madeira na proa do navio, que fica branco quando a filha do prefeito o atinge com uma garrafa de rum (ou cachaça, sei lá).
Eu… nem entendi qual a gag aqui. De verdade. Ele até fica com um sorrisão, provavelmente ficou bêbado…? O que explicaria a cor branca…? Enfim.
O chinês eu até compreendo, mas os índios parecem absolutamente inofensivos e adequados ao velho oeste. Mas hey, se a Disney encrencou com o zumbi de A Saga do Tio Patinhas… Raio, quando Resident Evil 5 foi apresentado, foi acusado de racismo por mostrar um branco matando uma vila de negros. O jogo se passa na África.
Enfim, em futuros releases, é óbvio que essas cenas foram cortadas ao invés de serem mantidas com um disclaimer, porque o Rato não tem bolas o suficiente. Ou porque ninguém se importa com a produção de curtas anyway, muito menos a Disney, que parou de dar importância pra animação em geral.
Mas o curioso é que minha versão tem essas cenas, sem nenhum disclaimer. Sim, eu tenho uma edição física com o curta, além de outros como os curtas da Tartaruga e a Lebre, Babes in the Woods, Paul Bunyan e A Deusa da Primavera (a primeira animação com formas humanas realistas que a Disney produziu, como teste para Branca de Neve).
O DVD (que eu mostrei em um vídeo) em questão foi lançado em 2009, pouco antes da Disney ir 100% na preocupação com o que na época era o politicamente correto. E vem cá, pelo amor de Oz, que trabalho marromeno na capa do DVD, hein? Faz parecer que é um mockbuster tentando emular a Disney recontando fábulas clássicas em domínio público animadas por meia dúzia de japoneses/coreanos/taiwaneses ganhando 10 centavos a hora.
Eu tenho certeza que você pensou em algum desenho muito específico agora.
E fica aí o questionamento: ao invés de refazer os longas clássicos com filmes mequetrefes que tentam ser os clássicos mas nunca vão chegar ao pés dos originais ao invés de tentar ser algo próprio (como Pete’s Dragon de 2016 e os live actions de 101 Dálmatas), porque a Disney não tenta fazer adaptações live action dos curtas animados?
…
Ah, é.
O curta foi exibido na TV em um episódio de Wonderful World of Disney, onde eles mostram três tal tales americanas (tall tale é um conto popular absurdamente exagerado, tem um filme da própria Disney com alguns desses contos que vale a pena dar uma olhada, saiu no Brasil com o nome de Os Super-Heróis do Oeste e conta com Patrick Swayze como Pecos Bill). Outros curtas que passaram no episódio foram Paul Bunyan (que também tá no meu DVD) e Casey Jones at the bat (que eu resenhei em algum artigo da Retrospectiva Tio Walt).
Segundo a Disney Wiki, tem uma imagem do Windwagon Smith na fachada da barbearia na Shanghai Disneyland, mas eu não consegui encontrar. Devem ter mudado de posição ou a informação tá errada mesmo, sei lá. Também diz que haviam planos de fazer uma Land of Legends, o que incluiria uma ride de Sleepy Hollow e Windwagon Smith, mas nunca aconteceu e o lugar hoje é a Star Wars Land.
É uma pena que uma história com tanto potencial esteja fadada a ser esquecida mesmo. Mas se tiver um tempo, eu recomendo procurar esse curta na internet, é curioso ver uma animação tão diferente do estilo clássico Disney de uma maneira tão… barata. Não é à toa que o diretor, C. August Nichols, acabou indo pra Hanna-Barbera, onde foi animador supervisor de desenhos como Um Homem Chamado Flintstone, Manda-Chuva, Space Ghost, Clue Club e o desenho do Rambo.