Afinal, Malévola é uma bruxa ou uma fada má?
Eu posso absolutamente desprezar Aurora como a personagem rasa e mal desenvolvida que é, mas não significa que eu não goste de Bela Adormecida, o longa animado.
É um total triunfo que os artistas disneyanos tenham conseguido adaptar suas técnicas de animação e background pro estilo angular de tapeçaria medieval, e por tabela, mais próximo de Mary Blair.
E como eu sempre digo, o mundo de Bela Adormecida e Branca de Neve são um prato cheio pra fantasia medieval clássica, e quanto mais eu leio histórias (em prosa ou quadrinhos) mais me convenço disso. Já escrevi sobre algumas, incluindo uma onde os anões salvam uma fada e o Dunga morre, e sobre um filme nunca feito sobre os sete anões que exploraria a mitologia dos seres fantásticos com deficiência vertical.
Bela Adormecida segue o mesmo esquema, por mais que o marketing da branding Princesas nos faça esquecer. É um mundo habitado por reis, plebeus, goblins, fadas e bruxas, como Malévola.
…Malévola é uma bruxa, certo?
Digo, sim, a versão Wickedizada de Angelina Jolie deixa bem claro que Malévola é uma fada má, e isso é reforçado em Descendentes, porque eles tomam o filme mais recente como referência, porque seu público alvo tem a memória de uma poça d'água.
Mas Malévola é uma bruxa, correto? Temos as fadas, Fauna, Flora e a filha da sua tia Vera, e elas são bem diferentes de Malévola. Tem semelhanças, como realizar magia através de um objeto intermediário (varinha ou cajado), mas elas tem asas e mudam de tamanho o tempo todo, algo mais associado às fadas que conhecemos. Certamente o lance de categorizar Malévola de “fada má” é tão recente quanto 2014.
Até que um dia eu vejo o Magic English, série de fitas que eu via quando moleque e são ótimas pra aprender inglês. E eu me deparo com isso:
…Catapimbas.
Essa é uma série do final dos anos 90, começo dos 2000, mas já tratava Malévola como fada. Como raios?
Mas, eu acho que me adianto. Vamos voltar pro princípio, lá pro conto de Charles Perrault.
Tá, antes dele. No longuíssimo conto Perceforest, há uma história sobre Zellandine, que segue mais ou menos a história conhecida, só que com três deusas que abençoam a recém-nascida real. A deusa Themis se sente desrespeitada por não receber uma faca para a refeição (ou uma faca comum, dependendo da versão) e amaldiçoa a princesa. Assim como na versão de Gianbattista Basile, a princesa cai num sono profundo ao tocar em algum objeto pontiagudo e o príncipe a estupra, mas em Perceforest ele não pretende cometer o ato, até que uma das deusas praticamente o obriga.
Eu não tive saco de ler tudo e tou resumindo de artigos que achei. É uma das maiores histórias e é pra ser a origem das lendas arturianas, de algum jeito. A versão de Basile (chamada Sol, Lua e Talia) inclui a princesa engravidando de gêmeos e a esposa do rei que encontra a princesa adormecida sendo jogada na fogueira.
Longa história.
A versão de Perrault é, como diria o motorista particular de Marty Wolf, “censura livre”. Não tem nem uma beijoca, ora essa! A princesa sofre a maldição do sono profundo, passa tempo suficiente pros seus pais falecerem, outra família real assume, e o príncipe dessa família vai investigar o castelo misterioso onde dorme a princesa. E vejam só vocês, ao entrar no quarto da donzela, ele fica tão abismado pela beleza dela que sua reação natural é cair de joelhos.
E aí a princesa acorda.
Isso que é ter sono leve… eu acho.
Ok, foco. No prólogo de A Última Legião, são deusas; em Sol, Lua e Talia, a previsão é feita por astrólogos, e em Perrault, uma oitava fada que se sentiu ofendida por não ter sido convidada, ao invés de ficar em casa jogando CS com a Rainha Grimhilde e a Cruella.
Certas pessoas não sabem aproveitar a oportunidade.
E Walt?
É… complicado.
Na Disney Wiki, ela é descrita como uma fada má baseada na fada má do conto de Perrault. No artigo sobre o filme, há uma nota sobre a origem das fadas, onde cada uma representaria alguma coisa, e Malévola (ainda sem esse nome) seria a Fada das Trevas.
Pra ser justo, em nenhum momento do filme Malévola é referida como “fada má”, ou “fada sombria”, ou qualquer outra classificação similar. Na mitologia celta/medieval, existiam fadas boas e más, chamadas respectivamente de seelie e unseelie. 1 Porém, há um termo pelo qual ela é chamada em um momento, e este termo é “wicked witch” (bruxa má), pela própria Merryweather.
Não só acontece no filme, como também nas adaptações em quadrinhos:
Outro momento que a personagem é tratada como bruxa (pelo menos conceitualmente) é em Once Upon a Time, cujo universo existem fadas e há uma certa distinção entre elas e Malévola. Mas a lore dessa novela é meio zoada, então eu não levaria ao pé da letra.
A confusão entre fada má e bruxa não é só minha, existem alguns artigos que usam o termo “witch” pra descrever Malévola.23 Uma criança que devia interpretar Aurora piveta também a chamou instintivamente de “bruxa”.
Mas durante minha investigação, é curioso que… as produções impressas americanas sempre tratam Malévola como “evil fairy”, e nunca como “witch”, salvo a fala da prima Vera.
Alguns exemplos:
Tirinhas de jornal da época são um bom indicativo de material excluído, como mostrei no artigo sobre os quadrinhos da Branca de Neve. Geralmente eles tomam notas de produção ainda em andamento, e as tiras expandem o que o filme não mostrou.
Por exemplo, nas tiras de jornal, é necessário uma narração quase que constante, devido ao ritmo da mídia (especialmente nessa época). Então, o narrador claramente define Malévola como “evil fairy”, com o extra “of darkness”, tal qual era a intenção original.
Essa aqui é um trecho de uma série de tiras natalinas (que eu muito provavelmente trarei no blog principal em dezembro), e novamente vemos o termo “evil fairy”. Essa série foi publicada em 1970, bem depois do lançamento do filme.
Notem que a “assinatura” usada como logo da Walt Disney ainda não era o familiar que conhecemos tão bem hoje, mas estava indo nesse caminho.
Como curiosidade, esse gibi francês que usa o termo “fée”, que é literalmente “fada”. Ele não usa o termo descritivo, a menos que esteja usando o nome próprio dela como adjetivo. Ou talvez use no texto, mas a resolução é horrível e eu não sou fluente em hon-hon-hon.
Essa é outra adaptação do filme para os quadrinhos, dessa vez pros gibis mesmo. O termo usado é “fairy of evil”, que parece um meio termo entre “evil fairy” e “fairy of darkness”.
Mas a parte curiosa vem agora.
Essa é a versão brasileira da mesmíssima história, mesmíssima versão. Duas coisas me chamam a atenção: uma é que eles traduziram “fairy” pra “bruxa”, mantendo o “of evil”. A outra é que a nossa versão veio em Super Technirama, enquanto a versão original foi publicada em widescreen comum.
Um dia ainda quero ter a experiência de ver Bela Adormecida do jeito que foi intencional, numa tela ligeiramente curvada. Deve ser tão bonito quanto pintar com Lukscolor.
LUKSCOLOR, A TINTA QUE DESCE REDONDO!
Enfim, talvez o termo “fada do mal” não fizesse sentido pro público brasileiro na época, porque “fadas são boas, bruxas são más". Eu aposto um Snickers que se eu for perguntar pro meu pai (que viveu essa época e lia quadrinhos Disney), ele vai explicar mais ou menos nessa linha de pensamento.
Eu sei disso, porque Vince McMahon já fez o Doink passar de heel pra face, porque “palhaços são legais, trazem a alegria; e Paul Burchill, que na época era um tipo Jack Sparrow, de face pra heel, porque “pirata é mau feito o pica-pau”.
Digo, a menos que cê esteja indo pelas regras de Oz, faz sentido, mas fadas más não são algo tão difícil do público brasileiro entender, elas tem o mesmo modus operandi do saci-pererê, praticamente.
Novamente, “bruxa do mal”, pra não deixar dúvidas que Malévola é terrível, assombrosa, maligna, feroz, e não deixa leite com biscoitos pro Papai Noel. Eu particularmente gosto muito desses livrinhos infantis, a arte deles é simplesmente algo bonito de apreciar. Se puder colocar as mãos em um, mesmo que digital, faça, não vai se arrepender.
A menos que você realmente consiga colocar as mãos em um livro digital. Nesse caso, depois me conta como foi o rolê com o Jeff Bridges.
Essa é uma história que menciono também por ser bem divertida. Envolve o Biquinho, sobrinho do Peninha, tentando terminar uma história pra poder dormir, e acaba aloprando e misturando tudo. Um sentimento que compartilho
Peninha é um personagem que vocês jovens só devem conhecer através do reboot de DuckTales, porque essa geração desaprendeu a ler gibis feito seres humanos funcionais graças ao falecimento da Editora Abril. O que não é desculpa, porque existem sites magníficos como A Gibiteca, o Chutinosaco, ReadComicOnline, ReadAllComics, e vários outros scans que preservam quadrinhos antigos que você pode ler sem nenhuma dificuldade em qualquer dispositivo que queira.
BANDO DE JOVENS SEM CULTURA! VÃO LER CARL BARKS PRA VER SE NASCE PÊLO NO PEITO DE VOCÊS!
E só pra fechar, mais um gibi brasileiro que classifica Malévola como “bruxa do mal”, mesmo o original sendo “evil fairy”.
Eu não sei exatamente que diferença faz pra vocês, mas pra construção de mundo de Bela Adormecida é muito mais legal ter uma fada maligna tão má que ela tá além de fazer as pequenas travessuras que fadas más normalmente faziam.
Ao invés de fazer o feijão queimar ou soltar os cavalos, essa fada é poderosa o suficiente pra tomar de conta de um castelo, ter um exército de goblins (cujos designs mudam nas tiras de jornal, sabe-se lá o motivo), e é tão amargurada que é capaz de virar um dragão pra impedir que uma princesa acorde só pra mostrar quem é que manda.
E mais, ela não precisa ficar pequena como as fadas boas, ela simplesmente anda junto de humanos e parece com eles o suficiente pra que sua aparência sobrenatural soe ainda mais estranha. A presença de palco que essa personagem tem é fantástica e justifica todo o poder que ela demonstra no filme, e claro, torna a vitória do príncipe mais satisfatória.
E aí Descendentes acha que é uma boa idéia transformar ela na Rita Repulsa.
Sim, eu ainda não superei. Bando de sacripantas.
Não vamos entrar na questão de que todo povo mágico/sobrenatural poderia tecnicamente ser chamado de fada (literalmente “fairy people”), ou estaríamos discutindo semântica. Você sabe a que me refiro quando digo “fada”, criaturinhas humanóides geralmente diminutas e com asas, com poderes mágicos variados.